A poética da iconografia da estatuária urbana – Sint-Joris en de Draak [São Jorge e o Dragão]

A estatuária urbana enquanto documento e
a cidade enquanto museu do património cultural.

Pela beleza e conhecimento que nos transmitem, isolando pormenores e cenas da realidade cultural e histórica, valorizando a diversidade dos lugares, das línguas e das culturas, as obras de estatuária urbana dão sentido de humanidade aos espaços públicos, transmitindo a história e preservando a memória singular dos lugares e das gentes, da sua consciência e do seu património.

Pelas narrativas e realidades sociais e culturais que transporta e pela sua presença no quotidiano dos locais, dirigindo-se a um número alargado de pessoas, a estatuária é uma arte cívica e um instrumento importante na formação das consciências e do conhecimento.

As obras de estatuária urbana têm a sua própria história e o seu significado para os locais e para os povos: podem mover chefes de estado e incendiar a diplomacia, sendo disso um exemplo a transferência, em 2007, da estátua do Soldado de Bronze de Tallinn [Бронзовый Солдатdo] no Monumento aos Mortos da II Guerra Mundial [Монумент Павшим во Второй мировой войне], também conhecido por Monumento Libertador de Tallinn [Монумент освободителям Таллина] na Estónia, situação que azedou as relações diplomáticas com a Federação Russa e provocou grandes protestos e tumultos públicos, donde resultaram vários feridos e a morte de um cidadão russo. Neste caso, é também importante notar a força política e identitária das línguas na gestão das relações entre os povos, e o modo como as línguas reforçam os laços de identidade dos povos e preservam a sua memória. As línguas têm em comum com a estatuária a sua distribuição geográfica como guardiãs das memórias humanas locais e regionais.

Aliás, o reconhecimento dos traços de identidade que cunham a estatuária urbana, designadamente a de cariz memorial, está expresso numa notícia paradigmática da emissora Russia Today, ilustrada com referência à mesma estátua do Soldado de Bronze de Tallinn, onde se lêem as declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, proferidas no Congresso Mundial dos Expatriados Russos em 2012, contra o “revisionismo histórico”, ou seja, o apagar da memória histórica: “It is absolutely essential that we work together to resist attempts at falsifying history and the outcome of World War II.” (Cf. “Moscow enlists Russian expats in fight against historical revisionism”. RT/ Russia Today – October 26, 2012) .

A iconografia relacionada com o domínio cognitivo da guerra é uma constante na estatuária que refere o Direito e a Justiça.

Todos nós reconhecemos nas belas e solenes estátuas da deusa da Justiça que adornam o exterior de muitos tribunais, o atributo iconográfico da espada. Mas, na estatuária judiciária que embeleza o exterior dos palácios de justiça, também notamos outros elementos que apontam para a dimensão experiencial associada à guerra, tais como, o cacete, o chicote, o varapau e o aríete. Estes atributos iconográficos presentes na conceptualização da Justiça evocam traços semânticos que se relacionam com o binómio “guerra/ paz”, o qual reporta uma conceptualização recorrente da dimensão experiencial do conflito. O nosso modelo cultural ocidental compreende no exercício da justiça a resolução de um conflito, no qual o Bem vence o Mal e, deste modo, o equilíbrio, ou a justiça, é restabelecido.
Nesta linha, a dimensão do guerreiro associada à vitória e à recuperação do equilíbrio e da justiça, ou da paz, são aspectos da semanticidade da conceptualização da justiça que vislumbramos, quer no conceito linguístico quer no conceito visual, na estatuária urbana.

Assim, a obra de estatuária urbana Sint-Joris en de Draak [São Jorge e o Dragão], no espaço público no centro da cidade de Groningen, é um exemplo da dimensão experiencial da guerra na conceptualização da Justiça e na sua realização artística escultórica.

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Afastando-se do modelo iconográfico tradicional, S. Jorge em vestes militares, montado a cavalo e ferindo com a sua lança o dragão prostrado a seus pés, esta obra escultórica reabilita a tradição do imaginário cristão da luta do Bem contra o Mal, mostrando um São Jorge em pé com uma espada apontada ao dragão desenhado no baixo-relevo aposto à base de pedra da estátua de São Jorge.

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Este é um caso interessante de associação do santo guerreiro não a uma intenção devocional mas a um monumento à II Guerra Mundial, evocando alegoricamente a vitória do Bem sobre o Mal.

nl-estátua pedestre de um guerreiro-groningen-08.jpgPrecisamente, a estátua pedestre em bronze (em tamanho maior do que o natural, 630 cm), da autoria do escultor Ludwig Oswald Wenckebach e datada de 1959, tem na mão direita uma espada com as inscrições “Justitia – Libertas – Pax 1945. 1940. Rechtvaardigheid, Vrijheid, Vrede.” [Justiça, Liberdade, Paz], donde reconhecemos no conceito linguístico o termo “paz” associado à Justiça.

Neste novo entendimento para o conceito Justiça, é importante relembrar a apropriação desta conhecida tradição do imaginário cristão presente nas lendas e tradições populares do património imaterial da Europa, pois são estas representações patrimoniais que nos permitem entender a conceptualização de noções abstractas – justiça –  representadas no conceito visual e no conceito linguístico que experienciamos na nossa vivência quotidiana e que registamos na iconografia da arte da estatuária presente no espaço urbano.

A poética da iconografia escultórica na conceptualização da Justiça cria novos entendimentos para o conceito através de novas figurações que estruturam novas coerências. Esta dimensão conceptual de representação da Justiça associada à semioticidade de São Jorge e do Guerreiro vem corroborar a tese da estabilidade do  conceito Justiça e da sua universalidade na cultura Ocidental.

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Este é um exemplo que mostra a poética e a criatividade da estatuária urbana na representação da Justiça, quer no conceito linguístico gravado na espada quer no conceito visual na representação iconográfica escultórica.

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